Chegou a hora de matar a curiosidade e ler os textos vencedores do Concurso Cultural sobre a República Tcheca. Confira as histórias vencedoras:
Primeiro lugar:
Obra: Precisando de inspiração? Sua próxima parada é a República Tcheca!
Autora: Ana Cristina Silva Abreu
“Devo começar este relato deixando bem claro que odeio clichês. Não é minha culpa se eles são uma constante em minha vida, entendam. Como escritora, tento fugir deles (não como o diabo da cruz, que fique claro), mas, há momentos em que é impossível escapar. Eu bem queria ter essa consciência naquela manhã de outono.
Era outubro e as chuvas não deveriam estar castigando a E48 daquela forma. Bendita hora em que resolvi ir sozinha para Karlovy Vary! Pra não dizer outra coisa. Mas, o dia estava ensolarado em Praga, a viagem era curta, o lançamento do meu livro seria no dia seguinte pela manhã e o táxi que iria me levar naquela tarde acabou parado na oficina.
Sim, eu poderia ter esperado o dia seguinte, encontrado outro motorista, pedido encarecidamente para a organização atrasar um pouco o início do evento, mas não. Em monentos assim eu lamento ser tão sistemática. Decidida a passar a noite em Karlovy Vary para ter tempo de vagar pelas ruas de contos de fadas, ouvir uma orquestra tocando valsa e aproveitar as águas termais, lá estava eu dirigindo um Peugeot 208 alugado, sozinha, dona de um extenso vocabulário em tcheco compreendendo coisas como dobrý den, ano, ne e pouco mais que isso, quando a tempestade caiu.
Eu mal enxergava e o sinal do GPS, lógico, desapareceu. Com assim? Eu estava num dos países com a melhor internet do mundo! Clichês, meus caros, sempre eles. Já em Lubenec havia uma obra na pista e a chuva fazia com que a terra virasse lama. Diminui a velocidade, o que não impediu que o para-brisa fosse encoberto e, antes que os limpadores dessem conta da tarefa, devo ter confundido a sinalização e acabei virando à esquerda quando deveria ter seguido reto.
Eu ainda não sabia, mas aquele desvio estragaria o lançamento do meu livro e a manhã de autógrafos no Grandhotel Pupp e me daria aquilo de que os escritores mais necessitam: uma história pra contar. A chuva não dava trégua, mas eu seguia determinada. A estrada tornou-se sinuosa, algo estava errado. Parecia alguma via vicinal, mais estreita, menos povoada. Não havia casas que eu pudesse enxergar, ou lojas para me abrigar e segui por mais alguns quilômetros. Passei por uma pequena cidade e achei que estava na rota certa. Depois outra, e a chuva diminuiu. A esta altura eu já deveria ter chegado!
Só ao me aproximar da terceira cidadezinha, o tempo cedeu. Pšov? Nunca ouvi falar deste lugar! Mas, para uma brasileira, os nomes das cidades tchecas são uma tortura mesmo. Melhor seguir em frente. A noite vinha caindo e eu apenas me dei por vencida ao me aproximar de uma diminuta vila em meio às árvores. Definitivamente eu já deveria estar no hotel e não havia mais como negar: estava perdida. Lu-ko-vá… eu li lentamente na placa enquanto a chuva engrossava de novo.
Passei diante de uma antiga casa que parecia vazia. Um pouco mais à frente havia uma igreja. Eu estava salva! Estacionei perto da casa de Deus e corri para a porta principal rezando para que estivesse aberta. E adivinhem? Não estava.
Eu bati, cheia de esperança, mas não houve resposta. Então, decidi andar ao redor do prédio. Estava escuro, a pouca iluminação na vila não ajudava, mas percebi um vulto dentro do lugar. Forcei os olhos, parecia uma mulher sentada num dos bancos.
Eu bati levemente contra a janela, mas ela não me notou. Bati mais forte e tentei chamá-la em inglês, gritei algumas palavras sem sentido em tcheco e, juro, tentei até em português. Vá saber, né? Nada. Provavelmente o barulho da chuva não permitiu que me ouvisse. Encontrei uma porta lateral e forcei-a um pouco.
Portas antigas geralmente então emperradas e aquele lugar parecia estar caindo aos pedaços. Não custava tentar! E, só para somar à lista dos clichês do dia, a porta se abriu instantaneamente. Eu quase caí para frente pela inércia e fiquei parada por alguns segundos enquanto meus olhos se acostumavam com a penumbra entrecortada pelo fraco luar que entrava timidamente pelas grandes janelas.
Quando meus olhos ficaram mais confortáveis, um calafrio subiu pela minha espinha. Havia algo ali, ao meu lado, imóvel. Acho até que podia sentir sua respiração, ou talvez fosse a minha mente assustada. Virei-me lentamente, minhas pupilas se dilatando. Uma pessoa? Coberta por um véu? Algo do tipo, eu não conseguia enxergar direito. Soltei um grito e corri pelo pequeno corredor lateral, tropeçando e apoiando-me nas divisórias dos grandes bancos de madeira.
O lugar não era grande, mas parecia grandioso. Ou fora um dia. A escuridão e a luz fraca do lado de fora, o barulho da chuva sobre o telhado castigado pela ação do tempo e o vento forte deixaram-me atordoada. Quem era aquela pessoa? Ou talvez eu apenas estivesse vendo coisas que não existiam. Escritores de ficção tendem a ser um tanto, digamos, imaginativos mesmo no dia-a-dia.
O pequeno corredor ligava a entrada lateral ao que parecia ser o corredor central da nave, a meio caminho do altar. Parei para recuperar o fôlego. Olhei para um banco à minha frente e, novamente, eu juro que havia alguém ali. Outra pessoa coberta num estranho véu, algo assim, sentada num silêncio aterrorizante.
Tentei ser racional, talvez tivesse invadido a igreja em meio a alguma espécie de meditação coletiva, uma vigília. Mas, sem velas? Sem rezas? Ergui um pouco o olhar e notei mais figuras sentadas ao redor daquela. Girei sobre meus calcanhares e, nos bancos do outro lado alguns vultos também se distinguiam. Ninguém se mexia.
Os sons do mundo lá fora e as imagens distorcidas pela penumbra interior me faziam ouvir estalos e gemidos. Corri na direção da outra porta, sem pensar muito. A estranha figura continuava parada na porta lateral, um pouco curvada para frente, e eu não conseguiria fugir por ali. Perto do que deveria ser a entrada principal, eu freei bruscamente, deslizando sobre o piso com minhas botas molhadas. Três outros seres em suas túnicas e com as cabeças cobertas impediram minha passagem.
Parados diante da porta fechada, inclinaram-se sobre mim, ameaçadores. Eles não precisavam, mesmo, dizer nada. Instintivamente corri na direção oposta, desesperada, devo confessar. O altar, este sim, estava vazio. Antes de me aproximar mais, olhei pata trás. O que parecia ser um monge sentado na primeira fileira, olhava na minha direção.
Com o pouco de coragem que me restava (e devo informar que coragem não é exatamente o meu forte), aproximei-me e tentei balbuciar um dobrý večer com a voz o menos trêmula possível. Não houve resposta. Cheguei mais perto para olhar bem seu rosto. Não devia ter feito isto! Meu coração acelerou ao mesmo tempo que um raio iluminou toda a nave e eu pude ver aquele… vazio.
Sim, um vazio negro no que deveria ser um rosto humano. Ele me observava, sei que sim. Eu podia sentir sua respiração. O barulho do trovão me pôs alerta, eu caí sentada e me arrastei para trás. Meio em pé, meio de joelhos, subi os degraus e sentei-me, encolhida, lá no fundo. Não pode ser real, não é real! Estou sonhando. Era comum para mim ter sonhos lúcidos.
Em algum momento eu percebia, por alguma imperícia da mente que contrariava a lógica, que estava num devaneio e me forçava a acordar. Naquele momento, segui a conhecida atitude dos sonhos e repeti a mim mesma que queria acordar, acordar já! Mas eu estava em vigília, não havia dúvidas. Não iria acordar. Eu havia notado um cemitério lá fora, antes de entrar. Nada de anormal para uma igreja de interior. Mas aquela igreja tinha donos, isso sim. Deviam ser as pessoas enterradas lá fora. Eu havia perturbado seu descanso, eu havia profanado seu lugar santo!
Na certa estava amaldiçoada e nunca conseguiria sair dali. Não sei quanto tempo passei sentada naquela posição, abraçando meus joelhos e tremendo de frio e de medo. Mas, eventualmente, o cansaço falou mais alto e adormeci. Sonhei com fantasmas encapuzados e sem rosto que me perseguiam e com mãos ocultas que seguravam meus braços e pernas e me impediam de escapar.
Despertei com a luz de um lindo sol que invadia a igreja e uma voz gritando em numa língua ininteligível. Abri os olhos, assustada, e um homem alto e loiro apontava pra mim e continuava gritando, tão surpreso quanto eu. Levantei-me num salto e corri para a porta, onde um outro homem, já com mais idade, segurou-me pelos braços enquanto falava num tcheco que não pude nem tentar entender.
Como não parasse de me debater, ele me arrastou para fora e tentou seguir num inglês esforçado. Queria saber o que eu estava fazendo ali, como havia entrado, quem havia permitido. Meio sem jeito, narrei os fatos da noite anterior. A chuva, o desvio errado, como encontrei a vila e a igreja, como entrei e, principalmente, contei sobre as criaturas de além-túmulo que me cercaram e impediram minha fuga.
Ele soltou uma gargalhada e largou meu braço. A família de turistas, àquela altura, achava o meu drama mais interessante e digno de fotos do que a igreja em si. Volte lá pra dentro e veja por si mesma, orientou o destemido homem. Eu caminhei alguns passos lentos de volta à entrada, sob os olhares curiosos dos turistas e dos poucos moradores locais atraídos pela gritaria. Parei sob o umbral, respirei fundo e dei mais um passo. Estremeci. Ao meu lado estava a tão assustadora criatura que me recepcionou na noite anterior. Eu a toquei com cuidado e recolhi rapidamente a mão.
Era tecido e gesso, só isso. Avançando igreja adentro notei todas aquelas figuras sentadas nos bancos ou em pé no fundo, cada uma numa posição. Sozinhas, abraçadas, uma carregava um bebê. Eram todas esculturas de tecido e gesso.
O homem que era o zelador do lugar se aproximou e aproveitou para fazer as devidas apresentações. O senhor Petr trabalhava ali há anos, abrindo as portas para os turistas fotografarem e cuidando da exposição instalada por um professor e artista tcheco chamado Jakub desde 2012. A ideia era, segundo suas explicações, evidenciar o desapreço do povo pela vida religiosa, já que o país é um dos menos devotos do mundo atual, o abandono de igrejas como aquela, além de arrecadar fundos para sua restauração e manutenção.
Os 32 fantasmas esculpidos delicadamente com materiais tão simples já não pareciam mais os algozes daquela noite chuvosa. Eram belas figuras, velando em paz por aquela igrejinha quase desconhecida. Sentei-me em um dos bancos, extasiada, e suspirei. Senti-me sortuda por ter descoberto aquele tesouro escondido. Tive tempo para observar a arquitetura, os detalhes entalhados em madeira, as colunas na entrada sustentando a ala superior, os janelões envidraçados, o humilde altar que havia me abrigado.
Os turistas de língua desconhecida seguiram fotografando a instalação por algum tempo, fizeram uma generosa doação e partiram. O senhor Petr me disse para não ter pressa, mas evidentemente tinha mais o que fazer da vida do que ficar ali tomando conta de uma louca invasora. Busquei na carteira as únicas 500 coroas tchecas que tinha e entreguei para doação, meio sem jeito. Ele pareceu muito satisfeito e acompanhou-me até o carro. Antes de nos despedirmos, insistiu em saber como eu havia conseguido entrar, visto que ele estava certo de ter trancado a porta no dia anterior.
Mas, estava aberta, eu insisti. Ele sacudiu a cabeça denotando ser impossível. Eu olhei para aquela construção mais uma vez, sem saber o que responder. A velha Igreja de São Jorge (Kostel svatého Jiří) mantinha-se lutando contra a ação do tempo desde 1.352. Por fora beirava a ruína, os tijolos aparentes com a pintura desaparecendo, as portas gastas e, bem no alto, insistente e até imponente, despontava o velho campanário. Por dentro, quantos segredos escondia? Quais mistérios permaneciam insondáveis? Seria arrogância minha acreditar que eu fazia parte de mais um deles?
Ah, depois de uma noite tão intensa, eu tenho direito a um clichê, não? No caminho para Karlovy Vary o sol brilhava e o GPS cumpriu seu papel. Dirigi sem pressa, pensativa. Meu editor ligava a cada cinco minutos perguntando como eu estava, onde eu estava, o que faríamos com a fila de leitores que aguardava por um autógrafo e pelo bate-papo com a autora em frente à entrada do hotel, à beira do rio Teplá. Acho que devo entretê-los com as histórias do 007, disse ele, referindo-se ao episódio Casino Royale filmado ali.
Enfim, sentenciei: Que 007 que nada! Diga-lhes que os fantasmas da Igreja de Luková me fizeram refém por uma noite, mas que eu já consegui escapar e mal posso esperar pra contar tudo a eles.”
Segundo lugar
Obra: Para viver um grande amor
Autora: Juliana Rabelo
“- Ao acordar, lembre-se todos os dias que a vida pode ser bela. E agradeça.
Assim falava o meu avô. Um velhinho de quase 80 anos, manco da perna direita, elegante como um fidalgo com sua bengala de madeira e sua camisa de linho engomada. Ele ficava sentado na varanda do quintal quase como uma estátua. Em silêncio. Observando. No começo eu fugia dele. Tinha medo da sua bengala e das sobrancelhas tão grandes que quase encobriam seus olhos. Passava por ele de fininho tentando ser invisível. Esperto que é, ele fingia que não tinha me visto. E quando eu estava no local certo, estendia a bengala de supetão na minha frente, como se fosse uma espada. “Atenção menina. Mantenha os olhos bem abertos! Quem sabe o que irá acontecer” E ria. E eu? Corria feito uma louca de susto.
Conforme fui crescendo troquei o medo pela curiosidade. O que ele fazia todos os dias naquela cadeira? Sempre tão alinhado e atento? O que ele estava esperando acontecer? Eu olhava para ele e ele para mim, como quem quer dizer algo. Mas eu não sabia nem como iniciar uma conversa com ele, afinal ele é um velhinho de outro mundo. Desenvolvemos então um jogo próprio. Que não era propriamente uma conversa. Estava mais para um monólogo. Eu dizia só uma frase. Tipo: comida preferida. E ele discorria livremente sobre qualquer coisa que quisesse. Falava até cansar. E no final sempre terminava do mesmo jeito:
– Você nunca me pediu um conselho minha filha, mas vou te dar mesmo assim: Když se probudíte, pamatujte každý den, že život může být krásný. A děkuji.
Eu gostava de ouvir ele falar. Era um jeito diferente de olhar o mundo. Mesmo que as vezes eu tivesse certeza que ele inventava tudo o que dizia. E ele sempre falava como quem lê em voz alta uma história. O que faz todo sentido já que ele foi professor de literatura na Unicamp por mais de trinta anos. Agora eu não entendia o palavrão que ele me dava toda vez de conselho. Não conseguia nem repetir um único fonema.
Curiosa, fui perguntar ao meu pai o porquê de coisa tão singular. Meu avô é brasileiro nato. Minha avó também era. Morreu já. De onde vinha este dialeto? A resposta me deixou com mais curiosidade ainda.
– Vem do amor minha filha.
– Desenvolva melhor meu pai.
– Você tem apenas 13 anos querida. Um dia vai entender que se tiver muita sorte encontrará o amor da sua vida. E com mais sorte ainda ele será o amor para a sua vida. Mas isso nem sempre acontece. No seu avô descasou. E ele ficou como o pescador de Caymmi. Com “dois amor”. Um bem aqui. E outro bem acolá. Foi depois da sua avó. Não deu certo. Mas ele jamais a esqueceu. E quanto mais ele se esquece de tudo, mais se lembra dela.
– Mas que dialeto é este que ele fala?
– É tcheco.
– E como ele aprendeu tcheco?
– Logo depois da morte da sua avó ele foi para um congresso de literatura na Alemanha. E conheceu lá esta moça tcheca. Só ligou para casa e avisou que ia demorar. Ficou um mês a mais do que o planejado, e quando voltou estava alegre e triste, ao mesmo tempo. Alguns anos depois, quando eu já tinha mais de quarenta anos, ele me contou alguma coisa. Mas nunca os detalhes.
Fiquei alvoroçada com estas informações. Agora eu queria descobrir tudo. Mas não queria perguntar diretamente. Tinha que ser pelo nosso jogo. Tirei uma tarde para estudar no Google sobre a República Tcheca. Se eu queria saber tinha que fazer bem feito. Escolher as frases com cuidado. Esperei ansiosa pelo dia seguinte. Uma curiosidade aguda me invadiu. Nunca me apaixonei. Sou quase uma criança ainda, tenho só 13 anos. Mas gosto de histórias de amor. Especialmente as verdadeiras.
No outro dia de manhã sentei ao seu lado. Trocamos nosso olhar já tradicional de bom dia. Ele acenou com a cabeça, como sempre.
Eu: “Melhor lugar para um primeiro beijo”.
Ele sorri: – Você está se tornando uma mocinha…
“O primeiro beijo da vida é sempre sem graça e não me interessa. Agora o primeiro beijo de amor é uma outra história. Este vale a pena lembrar.
Milan Kundera é um dos meus escritores favoritos. Ela me convenceu a tirar uns dias de férias e conhecer um pouco do país dele, que também era o seu. Eu era um jovem de pouco mais de quarenta anos. Tinha dois filhos em casa, sozinhos com a minha irmã, me esperando voltar. Mas o que tem que ser feito, tem que ser feito. Então aceitei o convite e o desafio de me perder. Este não foi dito de forma verbal, mas não precisava. Estava implícito.
Combinamos que não iriamos a Praga. Após dez dias em Berlim, eu queria o charme das cidades menores. Começamos então por Olomouc. Culpa de Mozart. E da Sexta Sinfônia. Pensar em seus acordes vibrantes era um bom pretexto para começar por Olomouc. Quantas surpresas me aguardavam! Nada que você já tenha visto se parece com a Europa. E entre todas as belas cidades e vilas, Olomouc se destaca. Joias barrocas por todos os lados. Igrejas, praças, fontes, torres e lindos palácios, numa arquitetura impressionante. Tudo se mistura em uma caminhada de vinte minutos, de mãos dadas, corpos próximos no vento frio do outono. Sua mão encaixada na minha era o máximo de intimidade que eu havia me permitido até então. Tão pequena, tão fina…
Chegamos então à famosa Coluna da Santíssima Trindade. Imponente e bela, símbolo de uma forte fé religiosa e de orgulho civil, representando a Trindade com o Arcanjo Miguel. Ao seu lado a Câmara Municipal. Ela me sopra ao ouvido, naquele sotaque meio rasgado que ainda faz tremer meu coração: “venha comigo, mas fiquei mudo.” Obedeço. Há muito aprendi que é melhor obedecer a uma bela mulher. Ela troca algumas palavras ininteligíveis com o guarda da Câmara. Alguma resistência. Mais palavras. Sorrisos. Me puxa pela mão educadamente. Acompanhamos um outro guarda, amigo do primeiro imagino, até a entrada da torre. Subimos sozinhos seus cento e quarenta degraus. Esbaforidos ao final. Ela sorri ao me mostrar a vista encantadora da cidade, com a torre ao centro. “Meu presente para você”. Não é possível resistir. Para tudo na vida há um limite. “E este é o meu”. A beijo apaixonadamente. E me perco, como previsto.
Você nunca me pediu um conselho…”
Vovô calou-se. Agora eu teria que esperar até amanhã.
Sento ao seu lado novamente, após uma noite de pesquisas e devaneios sobre beijos e mãos dadas em cidades centenárias.
– Um passeio de trem inesquecível.
– Quando você deseja de todo o coração que o tempo se dilate ao máximo, o melhor passeio é aquele que demora mais. Sem paradas, sem interrupções. Só o espaço confinado em que você pode olhar para ela por horas. Já sabíamos que seria a última das nossas andanças, eu partiria naquele dia a tarde. Saímos logo cedo, no trem das 8 da manhã. Acompanhados de um sol frio. Ela enrolada em um cachecol vermelho, que tornava suas bochechas ainda mais rosadas. A noite havia sido agitada, nenhum de nós dois dormiu bem, já antevendo o início do fim.
Nosso final de semana na cidade de Český Krumlov havia sido absolutamente encantador. Deixamos ela para o final devido a sua proximidade de Praga, já que em algum momento eu teria que ir até a capital pegar um avião. Não exageram os que exaltam esta cidade, marcada pelas belas curvas do rio Vltava. Nos perdemos em suas ruelas medievais, a procura de uma boa cerveja e um belo prato de Svičkova, com um knedlíky bem quentinho. Ela me fez experimentar todos os pratos típicos, e este foi o meu favorito. Opções não faltavam, e esta é a graça. Quanto mais nos embrenhávamos pelas ruas de pedra, mais encontrávamos lugares secretos e ao tentar voltar para algum que houvesse no chamado a atenção, mais nos perdíamos. Ela ria. E seu riso espantava o frio. Nos últimos dias passei a ter tremores. De alma, sei muito bem.
São quase três horas no trem. Cansada da noite mal dormida, ela cochilava, a cabeça encostada ao vidro. E eu a observava dormir. Para mim este é um dos maiores atos de amor. Observar a pessoa amada adormecida. Todos os detalhes do seu ser à frente dos meus olhos, para serem absorvidos. Tão entregue, tão indefesa. A forma como ela respira, seu hálito quente embaçando o vidro, sem me deixar ver a paisagem que corre pela janela. Com que sonhavas meu amor? Não sei. Apenas desejo que eu tenha estado neles, como você está nos meus. Arrumo com delicadeza seu cabelo, que teima em cair no seu rosto e faz o nariz dela tremer, com cócegas. Apesar da minha delicadeza ela abre os olhos. Azuis e profundos. Mas absolutamente ébrios de sono. Eu sussurro, “shsssss, shsssss, shsssss” como fazemos com um bebê, e ela volta a adormecer. Nunca uma viagem me pareceu tão melancólica e doce.
Você nunca me pediu um conselho minha filha…”
Vovô já percebeu que eu estou investigando. Mas não me conta tudo de uma vez. Coloquei no Google maps os dois lugares que ele me deu. Olhei com cuidado. Muito distantes um do outro. Houve alguma coisa interessante no meio do caminho. Com dez minutos de pesquisa eu achei! Continuaremos o jogo amanhã.
– Bom dia vovô. Um lugar assombrado.
– Como professor e estudante da alma humana sempre me pergunto sobre as emoções que somos capazes de sentir. E uma das que mais me encanta, obviamente é o amor, o ato de estar apaixonado. A outra é o medo, pelo seu poder. Ninguém percebeu isso com mais clareza que a nossa dama, Clarice Lispector. “O medo sempre me guiou para o que eu quero. E porque eu quero, temo. Muitas vezes foi o medo que me tomou pela mão e me levou. O medo me leva ao perigo. E tudo o que eu amo é arriscado. ”
Eu estava experimentando o amor. Agora eu precisava pelo menos homenagear o medo. A junção dos dois deveria produzir em mim mais uma catarse. Quando nos soltamos na beira do penhasco, gostamos de potencializar a queda. Esta é a verdade. Bastou sugerir que ela já tinha uma resposta.
Visitaríamos a pequena Kutná Hora. Ela já foi a fonte de um terço da prata de toda a Europa. Atraiu riquezas e realezas. Se encheu de histórias e prédios feitos para brilhar por séculos a fio. Mas o tempo passou, a prata se foi e outros ocuparam o seu lugar ao sol. Entre as lembranças desta época áurea está o Ossuário de Sedlec.
No caminho ela me explica como tudo aconteceu, com as devidas pausas e caretas necessárias para começar a despertar o sobrenatural que existe em nós.
Quer tornar algo eterno ? Adicione a ele um pouco de fé. Assim fez um abade de Kutná Hora, ao trazer para o cemitério local (o Cemitério de Todos os Santos) um pouco de terra da Colina do Calvário, em Jerusalém, onde Jesus foi crucificado. E aí o Cemitério de Todos os Santos se tornou um local sagrado para os fiéis da República Tcheca e dos vizinhos como a Polônia, a Bavária e até da Bélgica. Quando a capela atual foi erguida, no início dos anos 1300, dezenas de milhares de pessoas já estavam enterradas naquele chão. Somasse a eles então os mortos das infindas guerras entre os europeus. Em 1500 a capela não dava mais conta. O ossuário no seu andar inferior precisaria ser usado. Até aqui só história, sem medo. Até que um monge de gosto único resolveu redecorar a capela com os ossos disponíveis. Começou bem , mas o teto caiu. Tudo foi refeito. E outro monge recomeçou o projeto dos ossos, porque mesmo o que parece esdrúxulo sempre encontra um seguidor interessado. As obras que veremos hoje foram criadas por volta de 1870, pelo carpinteiro e artesão tcheco František Rint – que deixou sua assinatura numa das paredes do salão, escrita com ossos, como não podia deixar de ser..
Entrei na igreja com reverência e curiosidade. Tinha que ser no subsolo né? Ao descer os degraus a temperatura cai, e você não consegue deixar de pensar que embaixo da terra se está mais perto do mundo dos mortos, do que do mundo dos vivos. Quarenta mil pessoas. Oitenta mil orbitas me observando em silêncio imortal.
A visão do seu lustre tão famoso, do brasão da família e de outros elementos decorativos concretos e abstratos entre crânios, tíbias e costelas me fez pensar em outro mestre do medo, Edgar Allan Poe: “Não há beleza rara sem algo de estranho nas proporções”.
Confesso que sai impressionado. Como brasileiro que sou não posso deixar de pensar nas almas que acompanharam aqueles ossos. E em quantas delas ainda permanecem por aqui, entre os encarnados. Combati o medo com o amor, e dormi de conchinha, usando a força dela para encobrir a minha fraqueza.
Posso lhe dar um conselho?…”
À noite, como vovô, tive medo. Logico que fiquei vendo as fotos do Ossuário até adormecer.
Outra manhã. Minha última pergunta.
– Onde se despedir de um amor.
Ele me olha, em silêncio, depois se volta para o quintal. E assim fica por dez minutos. Eu já havia me arrependido da pergunta. Não quero faze-lo sofrer. Quando enfim ele começou.
– O Castelo de Cesky Krumlov, viu morrer o meu amor.
“Que não seja imortal posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure.” Quanta sabedoria em um verso. Pois ao nascer, o amor já começou a morrer. Triste sina a que é dada aos amantes. Alguns amores são mais amenos, amores para uma vida calma e inteira. Mas são estes amores que constroem as grandes histórias. Os que nascem fadados a um fim.
Se a vida te der o luxo de viver algo assim, lembre-se de se despedir com estilo. A despedida não está no ultimo abraço ou olhar. Está no momento em que vocês percebem que inevitavelmente acabou. Tão inexorável quanto a morte física. Aquele minuto em que nada é dito, mas tudo está lá.
O Castelo de Cesky Krumlov foi nossa última visita, no dia em que nos perdemos nas ruelas medievais da cidade. Tão imponente e fascinante, sua enorme construção ao alto é formada por vários edifícios, palácios interligados e um magnífico jardim. Como todo castelo medieval, o castelo de Cesky Krumlov possui um enorme fosso com uma ponte móvel, onde ainda se preserva a tradição medieval em se criar ursos! Primeiro percorremos o interior, mãos dadas e em silêncio. O enorme salão no qual eram realizados os bailes de máscaras; a Cloak Bridge, ponte interna que interliga dois edifícios do Castelo e onde existem belíssimas estátuas originais da época da construção; o teatro barroco, um dos mais bem preservados da Europa, mantendo o palco e o auditório com características, totalmente, originais. Tudo tão belo. Preservado após tantos anos em que os seus donos já se foram. Eles, seres inanimados: imortais. Nós, seres humanos: poeira das estrelas.
Por fim os jardins. Seus pátios infinitos. Suas árvores se desfolhando ao outono. Os troncos lisos e centenários acima das nossas cabeças. As folhas à beira da morte definitiva abaixo dos nossos pés. Ela ao meu lado. A cabeça em meu ombro. Levanto seu rosto e vejo as lágrimas que correm em silencio. Ela também entendeu. Como as folhas, ressecadas e sem vida, em breve vamos simplesmente nos desfazer e voar ao vento. E assim me despedi do meu amor.
Para além da dor, me senti grato. A vida pode ser bela.”
-Vovô?
Ele me olha com pesar.
– O nome de uma bela mulher.
– Kaleena Korbelova.
Ele se cala. E eu choro, sem disfarçar. Afinal sou quase uma criança. Não tenho para quê disfarçar. Ele chora, afinal é um velho. Não tem para quê disfarçar. Seguro suas mãos ossudas e enrugadas. Aliso com carinho seu bigode imenso. Me aproximo e sussurro ao seu ouvido:
– Když se probudíte, pamatujte každý den, že život může být krásný. A děkuji.
Tenho treinado pelo Rosetta Stone, um aplicativo legal de línguas. Quando eu fizer dezoito anos vou conhecer a belíssima Republica Theca. E me apaixonar. De um jeito ou de outro.”