O Brot é pop: como o pão virou ídolo na Alemanha

A história, a cultura e as variações do alimento mais amado pelos alemães – e, de quebra, padarias, museus e outras atrações que transformam essa paixão em um delicioso (e calórico!) roteiro de viagem

Uma família alemã consome, em média, 56 quilos de pão por ano (fotos: Hoa Luu/Pixabay e Mae Mu/Unsplash)

Existe uma disputa acalorada entre alguns países europeus para ver quem merece o troféu de melhor pão do mundo. Uma competição, vale dizer, levada muito a sério por nossos amigos especialistas em chucrutes, salsicha e cerveja. Basta conviver um tempo na Alemanha para entender que isso não é exagero – é uma questão de honra nacional. E eu posso provar! Quer conquistar o coração de um alemão? É só elogiar o seu pão. Quer discutir um assunto mais sério do que política e futebol? Fale sobre pão. Quer descobrir se alguém é do norte ou do sul? Pergunte qual o melhor pão do país. Quer fazer um alemão feliz? Diga que o Brötchen dá de dez na baguete da França.

A verdade é que, por lá, o pão vai muito além da mesa do café da manhã – é orgulho, símbolo de identidade, elo entre gerações e parte substancial do cotidiano. Há intervalos no dia dedicados a ele até mesmo no nome: a palavra Abendbrot – literalmente, “pão da noite” – significa aquele pãozinho que se come lá pelas 18h, fazendo as vezes do jantar, e Pausenbrot é uma paradinha para comer pão, como o recreio escolar ou o cafezinho no trabalho. Não me surpreende que exista o Dia do Pão Alemão, celebrado toda terceira terça-feira de maio. E sabe aquele nosso clássico “vende igual banana”? Na Alemanha, obviamente, o sucesso se mede em fatias: o que bomba “vende igual pão fatiado”.

Os números também não deixam dúvidas sobre essa devoção. Segundo a Associação Central da Panificação Artesanal da Alemanha, uma família alemã consome, em média, 56 quilos de pão por ano. Só de pontos de venda, são mais de 40 mil padarias para uma população de 83,2 milhões de habitantes – ou seja, uma padoca para pouco mais de dois mil habitantes. 

Existem mais de 3.200 receitas de pães registradas na Alemanha (foto: Anna MW/Pexels)

Depois de me mudar com mala e cuia (e churrasqueira!) para a Alemanha, admitir a superioridade do pão alemão foi uma etapa inevitável no meu processo de adaptação ao país. Aos poucos fui me desvinculando do apego afetivo ao nosso amado pãozinho francês para cair nas graças do Schwarzbrot, Graubrot, Kümmelbrot, Katenbrot, Roggenbrot, Vollkornbrot, Weizenschrotbrot, Sonnenblumenbrot… 

A variedade de “brot” (pão) catalogada na Alemanha ultrapassa as 3.200 receitas registradas – mais do que em qualquer outro lugar no mundo. E se você, assim como eu, se pergunta de onde vem tanta criatividade para fazer pão com nomes quase impronunciáveis, a resposta se esconde na essência do ofício: o segredo está no modo de preparo, na fermentação, no tipo de farinha usada e, principalmente, na filosofia por trás da massa. O pão não precisa ser leve para ser bom. Ele pode ser ácido, escuro, denso, rígido. Pode durar uma semana e continuar digno de uma fatia generosa de queijo ou de carne moída crua com cebola no clássico e corajoso Mettbrötchen.

Na Alemanha, o pão pode ser escuro, denso e rígido (foto: Albatross Bakery). À direita, o Mettbrötchen, com carne moída crua (foto: Björn Kapitz)

Muito antes da padoca

A excelência da panificação alemã é mais velha que a própria história do Brasil (muito mais, aliás!). Ela vem de séculos de dedicação a métodos artesanais, do uso rigoroso de ingredientes minimamente processados, grãos de alta qualidade e técnicas tradicionais repassadas de geração em geração. Não por acaso, em 2014, todo esse legado foi oficialmente reconhecido como patrimônio cultural imaterial pela UNESCO.

Antes de ocupar lugar de prestígio na mesa, o pão alemão trilhou um caminho moldado pela história, clima, geografia e talento humano. Entender essa jornada exige voltar milênios no tempo, até os primórdios da civilização europeia, ainda na era pré-histórica, quando as tribos germânicas cultivavam grãos ancestrais como o emmer e o einkorn, precursores do trigo moderno. Esses cereais eram moídos entre pedras rudimentares e assados diretamente sobre superfícies aquecidas, dando origem a pães densos, rústicos e essenciais para encarar o frio implacável do norte. 

O avanço para a  Idade Média fez o pão se sofisticar. A introdução dos moinhos d’água revolucionou o processo, e moer grãos ficou mais eficiente, menos trabalhoso e muito mais rápido. A produção de farinha deixou de ser um trabalho exclusivamente manual e, assim, o trigo, o centeio e a espelta passaram a frequentar mais as receitas, abrindo caminho para a incrível diversidade de pães que o país tem hoje. A fermentação natural, chamada Sauerteig, também ganhou espaço ao intensificar o sabor, enriquecer a textura e aumentar o valor nutritivo do pão.

Curiosamente, a Reinheitsgebot – a Lei da Pureza da Cerveja, criada em 1516 na Baviera –também impactou a panificação. Ao reservar o trigo para a fabricação de cerveja, ela empurrou os padeiros para o uso mais criativo do centeio e da cevada. Resultado? O nascimento de clássicos como o Pumpernickel e o Vollkornbrot.

De geração em geração 

Manter a tradição na panificação alemã não significa limitar espaço para novidades nas prateleiras das padarias. Inovações ousadas convivem muito bem com receitas já consolidadas. 

Para os apaixonados por pão, a vantagem de combinar o conhecimento das gerações é encontrar lugares como a Bäckerei Adl, fundada em 1573, na cidade bávara de Kemnath – a padaria em atividade contínua mais antiga da Alemanha. Instalada em um prédio pertencente à família desde 1392, a panificadora está sob os cuidados dos Krauß há 19 gerações. A casa sobreviveu à Revolução Francesa, fim de impérios, duas guerras mundiais e à queda do muro sem nunca abrir mão da qualidade artesanal. A ligação com a panificação é tamanha que até o brasão da família, criado no século 18, faz referência ao ofício. Além do balcão, a padaria oferece mesas para os clientes tomarem um cafezinho enquanto saboreiam a especialidade da casa: a Nusszopf, uma deliciosa trança doce de nozes.

Com a mesma reverência à tradição, a Bäckerei Hinkel, aberta em 1891, em Düsseldorf, faz pães premiados desde 1895. Comandada pela quarta geração da família Hinkel, a padaria produz entre 55 e 60 tipos diferentes de pães, todos feitos artesanalmente com fermentação natural. Altamente recomendo provar as tradicionais Printen, feitas com receita secular e secreta; o Elsässer, um pão de centeio com pistache e avelãs, e o Müslibrot, um pão encorpado, com 50% de nozes e frutas secas.

Para ilustrar essa conexão harmoniosa entre gerações, a Albratross Bakery, em Berlim, abriu suas portas em 2016 com um conceito de panificação contemporânea, criativa e autoral – e com sabores nada óbvios: beterraba, ameixa com avelã, abóbora… Mesmo com apenas um balcão e uma vitrine exibindo os produtos do dia, esta padoca está entre as mais concorridas da capital alemã. Há quem atravesse a cidade só pelo croissant de pistache, com crosta crocante e miolo absurdamente macio. Ainda tem o pão com crème bruleé, o croissant com caramelo e flor de sal, o bolo de laranja com erva-doce…

A variedade de pães da Albratross Bakery, em Berlim, como o croissant de pistachio e ricota (foto: Albatross Bakery)

Uma das maiores provas do casamento afinado entre tradição e vanguarda é a Bäckerei Schmitt, em Frankenwinheim. Com mais de 100 anos de história, a padaria é liderada por Axel Schmitt (representante da quarta geração da família), que além de mestre-padeiro, confeiteiro e autor de livro sobre panificação, é sommelier de pão. Sem brincadeira! A Alemanha instituiu uma profissão para experts em harmonizar pão a outros alimentos e bebidas, semelhante ao sommelier de vinho (com certificação oferecida pelo Deutsches Brotinstituto Instituto Alemão do Pão). 

Axel, inclusive, ficou famoso por desenvolver um projeto curioso: estudar o efeito do heavy metal na fermentação do pão sourdough. A ideia surgiu inspirada no famoso Festival de Wacken, onde ele serve pães para músicos e público, como o Uri-Leckerkrust, feito com os grãos ancestrais einkorn e emmer, e o Finnenbrot, denso e com mais de 20 ingredientes. 

Para cada região, um pão (ou mais, bem mais!)

Brötchen, Schrippe, Wecken, Semmel, Rundstück… Cinco nomes diferentes para o mesmo pão. Na Alemanha, a forma como se chama o nosso tradicional pãozinho francês muda conforme a região: Brötchen para o norte, Semmel no sul, Schrippe em Berlim, e por aí vai. Mas as variações vão além da nomenclatura: cada canto do país tem seu próprio estilo de panificação, influenciado pelo clima, tipo de solo, disponibilidade de grãos e, até mesmo, heranças históricas e culturais.

No norte, por exemplo, o centeio reina absoluto. Mais resistente ao frio e às chuvas, ele cresce com mais facilidade nesta parte do país do que o trigo. Isso impulsionou a criação de pães escuros, com textura encorpada e sabor ácido, como o Schwarzbrot e o Roggenbrot.

Já no sul, a história é outra. Os verões mais quentes, os períodos de seca e o solo fértil favorecem o cultivo de trigo e espelta, ingredientes para uma panificação mais leve e aerada, como o clássico Pretzel e o rústico Bauernbrot.

À esquerda, o famoso pretzel (foto: Sven Mieke/Unsplash); acima, o Berliner, a inspiração do nosso sonho de padaria (foto: Elisheva Nyek/Unsplash), e, abaixo, o Franzbrötchen, típico de Hamburgo (foto: Markus Spiske/Unsplash)

A lista de receitas que percorrem o país é extensa. A seguir, uma seleção dos principais pães alemães para uma imersão cultural e gastronômica:

Pumpernickel: protegido por indicação geográfica, só pode ser chamado assim se for produzido na Vestfália. Tem centeio integral, é escuro, denso, com textura úmida e sabor agridoce – e com um longo processo de cozimento a vapor que dura até 24 horas.

Roggenbrot: popular no norte e no centro da Alemanha, é feito com farinha de centeio, tem sabor intenso, miolo compacto e casca crocante. Ideal para acompanhar embutidos e queijos fortes.

Vollkornbrot: onipresente nas padarias alemãs, o pão integral é feito com grãos inteiros, costuma ser denso e com alto valor nutritivo. É uma das escolhas favoritas no café da manhã.

Mischbrot: com presença nacional, é um pão misto, com trigo e centeio em proporções variadas. A combinação garante um sabor mais suave e textura macia.

Bauernbrot: conhecido como “pão do fazendeiro”, é típico do sul e do centro do país. Mistura trigo e centeio, tem casca grossa, miolo úmido e sabor levemente ácido. É presença certa nas feiras e mercados locais.

Pretzel: símbolo absoluto da culinária bávara, o Brezel é feito de massa de trigo, moldado em forma de laço, fervido em bicarbonato e assado até ganhar uma crosta dourada. Crocante por fora e macio por dentro.

Weißbrot: lembra o nosso pão de forma, mas com sabor mais delicado. Feito com farinha de trigo refinada, é comum em sanduíches e torradas.

Mehrkornbrot: pão multigrãos saudável e popular em toda a Alemanha. Combina trigo, centeio, aveia, sementes (como girassol, linhaça e abóbora) e tem textura rústica e sabor levemente tostado.

Stollen: originário de Dresden, é um pão doce tradicional de Natal, feito com frutas cristalizadas, uvas-passas, nozes e marzipã, coberto com uma generosa camada de açúcar de confeiteiro. 

Franzbrötchen: especialidade de Hamburgo, esse pão doce lembra um croissant achatado com camadas caramelizadas de canela e açúcar – mas há versões de vários sabores. 

Berliner: apesar do nome, esse pão doce é encontrado em todo o país. É dele que veio o nosso sonho de padaria: uma massa frita, recheada com geleia de frutas e polvilhada com açúcar. 

O rolê do pão

Celebridade nacional, ícone cultural e estrela das mesas, é mais do que justo que o pão ganhe atrações turísticas próprias na Alemanha. O Museum Brot und Kunst (Museu do Pão e da Arte), em Ulm, a cerca de 90 quilômetros de Stuttgart, cumpre bem a função de esmiuçar o passado da panificação com uma coleção que atravessa seis mil anos de história. São mais de 18 mil objetos, de moinhos a cartazes de guerra, que ajudam a entender a importância desse alimento ao longo dos séculos. O museu se dividide em dois universos: o do pão e o da arte, com obras dos séculos 15 ao 21 de nomes como Picasso, Chagall, Rembrandt e Dalí – todas ligadas, veja só, ao pão! Não espere encontrar vitrines repletas de pães: aqui, o foco está nas dimensões culturais, políticas, religiosas e sociais do pão.

O Museum Brot und Kunst (Museu do Pão e da Arte), em Ulm, próximo a Sttutgart (foto: Bernhard Friese)
A coleção do Museum Brot und Kunst conta mais de seis mil anos de história do pão (foto: Bernhard Friese)

Para explorar os exemplares da panificação alemã, o endereço mais indicado é o Europäisches Brotmuseum (Museu Europeu do Pão), em Ebergötzen, cidade a 125 quilômetros de Hanover. Com mais de dez mil metros quadrados, este museu rural também faz uma viagem pela história da panificação europeia. 

O visitante encontra desde máquinas agrícolas e utensílios antigos até um jardim de cereais, moinhos em funcionamento (incluindo um de 1812) e reproduções de fornos da Era da Pedra e do período romano. 

O Europäisches Brotmuseum (Museu Europeu do Pão), em Ebergötzen (foto: Europäisches Brotmuseum)
Livros de receitas dos séculos 19 e 20 e reprodução de um forno da Era da Pedra (foto: Europäisches Brotmuseum)

Holzofenbäckerei Klostermühle, em Gengenbach, no sul da Alemanha, é hoje uma padaria com um forno a lenha de 1825, que assa diariamente mais de mil pães. O local funcionava, segundo registros de 1485, como uma padaria de mosteiro no século 15. Após um incêndio e uma longa pausa, o espaço foi resgatado pela família Pfaff, que atualmente chega à sua sexta geração no comando do estabelecimento. Do lado de fora do prédio, uma roda d’água de madeira com tecnologia de moagem do século 19 deixa claro o estilo tradicional de fazer pão. O Bauernbrot, assinatura da casa, é uma boa opção para um piquenique entre os vinhedos e parques da Floresta Negra, bem pertinho dali.

Algumas cidades alemãs, como Eifel, na Renânia-Palatinado, foram mais longe e criaram rotas do pão – ou Brotroute –, com trilhas e passeios de bike que conectam padarias artesanais, moinhos históricos e pequenas vilas com tradições centenárias de panificação. Muitas oferecem workshop, degustações e cursos para colocar a mão na massa. 

Outros destinos escolheram os festivais para promover o alimento, como Burghausen, na Baviera. A sua Brotfest Burghausen, realizada no mês de junho, tem programação 100% focada no pão, com cursos de panificação, degustações sensoriais com sommelier de pão e um mercado ao ar livre repleta de barracas com o melhor da produção regional – de pães e bolos a tortas e doces típicos. 

Depois dessa imersão gastronômica e cultural vivida na Alemanha, só resta uma certeza: quando o assunto é pão, o país garante o lugar mais alto do pódio.