Chega a ser engraçado. Sempre que a Bélgica é o assunto nas rodinhas de viagem, ela é citada como uma parada apressada, de dois ou três dias, geralmente encaixada no meio de um roteiro rechonchudo entre França e Holanda. Não sei como nem por que o país passou a ser visto como uma esticadinha, mas fiz um itinerário preguiçoso e delicioso (dá-lhe chocolate e cerveja) durante um giro de quase dois meses pela Europa. Foquei no trivial, encaixando Bruxelas, Bruges e Gent – fica compacto e bem amarrado unir a cena cultural e gastronômica da capital com o charme e o clima romântico dessas duas cidades perfeitinhas.
Bruxelas
Sem lenga-lenga
Ao pesquisar nos fóruns de turismo sobre a capital belga, encontrei um resumão indicando apenas como atrações o Manneken Pis (a famosa estátua do menino fazendo xixi) e o Atomium. Felizmente, vi que era muito mais.
Comecei pelo recheio do bolo, partindo direto para a Grand Place. De lá, desenhei uma caminhada até a Place du Grand Sablon e as ruas em seu entorno. Mas nada de pressa: fiz uma visita demorada à mais bela praça do país. Não à toa, é considerada uma das mais lindas do mundo – há quase mil anos é o coração da cidade.
Ela já foi palco de batalhas, confrontos e festanças e hoje reina como Patrimônio da Unesco. Dizem que até Engels e Marx, entre um copo de cerveja e outro, começaram a discutir algumas ideias do Manifesto Comunista em um dos (muitos!) bares à sua volta.
Entre os pontos famosos que abraçam a praça, destaques para o prédio da prefeitura e a Maison du Roi (Casa do Rei). O primeiro edifício, uma bela construção do século 15, abre para visitas guiadas revelando salas forradas de obras de arte; o segundo é uma construção neogótica convertida no Museu de Bruxelas. Dedicado à história da cidade, reúne mapas, documentos, telas e esculturas que ajudam a contar a trajetória da capital desde sua fundação. No segundo andar, há uma divertida coleção com mais de 800 peças – entre roupas e acessórios – usadas pelo Manneken Pis em épocas festivas.
Para ver ao vivo a estátua do garotinho fazendo xixi, é fácil a caminhada desde a praça. Criada no século 15, a escultura sobreviveu a bombardeios e se tornou o símbolo do espírito livre e rebelde da cidade. Ao longo do ano, ele troca de roupa várias vezes, atraindo o foco de centenas de câmeras fotográficas. Dali, um passeio pela Rue Haute rende olhares curiosos para as galerias de arte e os antiquários – deixe as paradinhas providenciais para lojas como a Vanclever, com postais antigos, fotos e livros vintage, e The Cartoonist, com cartoons e divertidos bonequinhos de personagens geek.
Pertinho, a Place du Grand Sablon é o lugar perfeito para provar alguns dos melhores chocolates belgas. É lá que ficam as principais lojas dos grandes chocolatiers, como Frederic Blondeel, Neuhaus e Pierre Marcolini. Mais de 172 mil toneladas de chocolate são produzidas por ano no país, sendo que só em Bruxelas existem cerca de 200 endereços especializados. Essa área também guarda uma livraria exclusiva da Taschen e uma filial da YellowKorner, que expõe e vende trabalhos de fotógrafos badalados.
ARTE E MAIS ARTE
De museu, Bruxelas passa bem. Ela tem os fantásticos Museus Reais de Belas Artes, quatro museus interconectados que guardam um acervo riquíssimo, com obras de artistas flamengos, como Rubens e Bosch, e surrealistas do século 20. Liderando o time desses últimos está o belga René Magritte, um ídolo nacional, sobre o qual você pode descobrir ainda mais no Museu Magritte, dedicado a ele. Lá, deixe a imaginação falar mais alto com trabalhos como Les Fils de l’Homme e Le Thérapeute, que afloram outras percepções do mundo em qualquer um.
Bem em frente, você descobre que a Bélgica vive num sistema de monarquia constitucional. Sim, com família real e um palácio. Eles não são famosos como o clã da rainha Elizabeth, da Inglaterra, mas moram bem no Palais Royal – visitas são permitidas de julho a setembro, durante as férias de verão.
Deixando a realeza de lado, conheça o Mont des Arts – Kunstberg. Hoje, esse morro no meio da cidade representa o bairro artístico, mas no século 11 a dividia socialmente em duas partes: alta e baixa. Ainda bem que agora sua única função é a de deslumbrar os visitantes com jardins simétricos e a melhor vista de Bruxelas. À noite, é lindo todo iluminado. Nessa hora, a pedida é escolher um degrau da longa escadaria e admirar o cenário.
Bruxelas também ganhou, em 2016, um excelente centro de arte contemporânea. O Millenium Iconoclast Museum of Art, ou Mima, apresenta trabalhos de artistas europeus que pretendem chacoalhar a cena artística urbana.
HISTÓRIAS EM QUADRINHOS: Da ficção à realidade
Nas últimas décadas, Bruxelas entrou em uma colorida metamorfose. Muitas ruas da região central foram tomadas por grandes painéis de arte urbana que retratam as histórias e os personagens mais conhecidos do país, como o jornalista Tintim, criado pelo escritor e desenhista belga Hergé.
Tudo isso começou em meados de 1990, quando antigas propagandas fixadas nas paredes dos prédios foram substituídas gradativamente por enormes grafites baseados em HQs. Esse movimento deu origem a um roteiro chamado de Comic Book Route – ou a rota das histórias em quadrinhos –, com mais de 50 paradas.
As aventuras de Tintim e de seu fiel escudeiro, o cachorrinho Milu, foram publicadas em mais de 70 línguas e já venderam mais de 200 milhões de cópias no mundo todo, tornando-se o personagem de quadrinhos mais conhecido da Europa. Além de influenciar diretamente a cultura local, proporciona a Bruxelas o título de capital internacional das histórias em quadrinhos.
Um exemplo de como esse formato é importante para a cidade é o museu dedicado exclusivamente ao assunto. O museu dos quadrinhos – também conhecido como Centre Belge de la Bande Dessinée – mostra os precursores desse movimento cultural, assim como trabalhos contemporâneos e a trajetória dos personagens mais famosos da Bélgica, como os Smurfs, que também foram criados no país em 1958.
A TRADIÇÃO DA CERVEJA BELGA EM BRUXELAS
A Bélgica é um destino imperdível para os aficionados por cerveja e pelos métodos tradicionais de fabricação. Reza a lenda que existem mais de 1.100 rótulos diferentes e as mais de 160 cervejarias produzem anualmente mais de 1,87 bilhão de litros da bebida por mês. O que nos deixa com a constante sensação de que, provavelmente, não vai dar tempo de provar todos os tipos durante a viagem.
Autointitulada “a capital da cerveja”, Bruxelas deixa a tradição transparecer em endereços clássicos como o Au Bon Vieux Temps. Como nos bons e velhos tempos, o bar tem mais de 300 anos e lembra o interior de uma antiga igreja gótica. Sua carta de rótulos é tão extensa que deixa qualquer um confuso. Quer uma dica? Comece pela Tripel Karmeliet ou pergunte qual é a favorita de quem estiver atendendo. As sugestões são sempre certeiras.
Fora isso, um novo movimento cervejeiro vem tomando as ruas de Bruxelas. No descolado bar Moeder Lambic, a bebida é feita de acordo com métodos tradicionais de fabricação, em que é possível degustar algumas lambics, uma variedade típica que passa por um processo de fermentação natural. O resultado é uma cerveja mais ácida, refrescante e muito diferente da que estamos acostumados a degustar no Brasil. Experimente de cabeça e coração abertos.
BRUGES: ROMÂNTICA E CENOGRÁFICA
Verdade seja dita: Bruges é, realmente, a queridinha da Bélgica. Conhecida como um dos destinos mais românticos da Europa, ela arranca suspiros graças às suas construções góticas e ao seu charmoso cenário repleto de casinhas com jardineiras floridas em bairros cortados por pequenos canais. É possível conhecer Bruges em apenas um dia, saindo de Bruxelas de trem (são 160 quilômetros). Mas, se puder, fique uma noite para curtir essa linda cidade gótica com mais calma e, quem sabe, emendar um jantarzinho a dois.
Entre o casario e a praça central, a cidade reserva exemplos importantes de arte sacra, como a Igreja de Nossa Senhora, que possui uma Madona de mármore feita por Michelangelo. Já na Basílica do Sangue Sagrado, acredita-se que está guardado um frasco com gotas do sangue de Jesus Cristo trazido direto de Constantinopla pelo conde de Flandres.
Dessa crença nasceu uma das procissões mais significativas do país: a procissão do Sangue Sagrado, que, em 2017, aconteceu em maio, e toma conta das principais ruas do centro, mobilizando os moradores e atraindo turistas e peregrinos de vários países.
Com as bênçãos de Santo Arnaldo, o padroeiro da cerveja, Bruges também segue a tradição e tem vários endereços para quem quer conhecer mais sobre o lúpulo belga. A cidade tem seu próprio museu dedicado à bebida, o Bruges Beer Museum, com destaque para os rótulos típicos da região. Esse é um bom programa para quem quer conhecer mais sobre história, métodos de fabricação e ingredientes básicos.
Ainda no circuito cervejeiro, a De Halve Maan oferece uma visita guiada pelo interior da sua fábrica e conta a trajetória da marca. Parte da sua produção é feita ali mesmo, dentro da área medieval. Além da típica Belgian Pale Ale, prove a Trippel da casa e, de brinde, ganhe uma bela vista do alto de Bruges.
Na busca pela cerveja perfeita, o ‘T Brugs Beertje é um antigo bar meio escondido que vende mais de 300 rótulos produzidos no país. Sua fachada pode facilmente passar despercebida, mas sentar-se no balcão e tentar entender todas as variedades do menu é um dos melhores programas de final de tarde em Bruges. É fácil perder a hora se divertindo entre cervejas típicas trapistas e de abadias.
GENT: O LADO UNIVERSITÁRIO
A 20 minutos de Bruges, Gent é capital da província de Flandres Oriental e considerada a pérola da região. Tem
um estilo arquitetônico incrível, muito preservado, e mais monumentos do que qualquer cidade belga. Suas ruelas
medievais e casinhas coloridas com frontões em degraus se misturam a um quê moderno e jovem graças aos universitários que vivem por lá.
Para conhecer melhor Gent, visite o Stam, museu que conta toda a história da cidade de maneira bastante interativa. Também recebe muitas exposições sobre urbanismo. Uma dica? Visite-o antes de começar sua caminhada pelo centro histórico. Tudo fica mais interessante. Outros museus, como o Smak, de arte contemporânea, e o Design Museum, especializado em trabalhos contemporâneos, são fantásticos.
Na hora do almoço, para fugir dos restaurantes mais turísticos, a pedida é o Balls & Glory, que fica numa das travessas do centro, perto dos canais. Com um nome engraçado, a casa serve bolinhos de carne com diversos tipos de saladas e molhos. As mesas compartilhadas proporcionam um clima mais descontraído e casual.
Deixei o passeio final para a Praça de St Bavo, com três famosas igrejas alinhadas. Elas são a Catedral de St Bavo (Sint-Baafskathedraal), o campanário Belfort e a Igreja de St Nicholas (Sint-Niklaaskerk), construídas entre os séculos 10 e 16. Graças a elas, Gent ganhou o nome de “a cidade das três torres”. A partir de lá, você provavelmente vai parar na área de Gravensteen, onde está o Castelo dos Condes de Flandres, construído em 1180, que já serviu de prisão e fábrica de algodão. No verão, subir em seu baluarte rende lindas fotos e memórias que vão provocar anos e anos de suspiros saudosos.
Onde se hospedar na Bélgica?
Bruxelas
Hotel Amigo
Próximo à Grand Place, este elegante hotel dos anos 1950 tem 154 quartos e 19 suítes. Seu bar é um dos melhores da cidade, com chá da tarde diariamente e shows ao vivo à noite.
Zoom Hotel
Próximo da rua de compras Avenue Louise, tem 37 suítes moderninhas, com decoração relacionada a fotografia.
Bruges
Relais Bourgondisch Cruyce
Hotel-butique com 16 suítes no coração da cidade, algumas com vista para os canais.
Gent
Ganda Rooms & Suites Gent
Hotel-butique com oito suítes em um prédio do século 17, perto da Vrijdagmarkt.
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